Multiplicam-se as vozes em diferentes espaços de tempo e lugares. A razão é a mesma: aquela pela qual o Homem clama, aplaude, sangra e faz sangrar, com o intuito de entreter. Uma prática realizada numa praça que serve um espectáculo antigo, tradicional e que põe frente-a-frente o touro contra o cavaleiro, o forcado, o cavalo e todos os restantes intervenientes, incluindo os espectadores. Um só, contra tudo e todos; um com o destino traçado e um momento único, aquele pela qual foram criados, outros em que aquele momento é rotina: o espectáculo tauromáquico. A tauromaquia em Portugal já registou dias mais favoráveis, a pressão dos movimentos e de grupos anti-touradas, as condenações internacionais à actividade, o maior desinteresse crescente e a queda dos números de assistência por espetáculo traduzem-se em esperança para aqueles que dedicam uma vida a combater a favor dos direitos dos animais e humanos.
A história da tauromaquia está marcada por um passado turbulento, passando por picos de êxtase e fama à sua extinção, com algum frequência nos últimos 300 anos. De facto, foi em épocas em que o pais se liberalizava e em que se aproximava dos ideias de outros países europeus que as corridas de touros foram ameaçadas por monarcas no século XIX, na primeira republica e nos dias de hoje. Mas não é um tema fácil de abordar, isto porque é difícil encontrar registos dos momentos mais complicados desta prática. “ Tentei perceber a história das touradas, mas foi um trabalho muito difícil porque os únicos registos que existem são de pessoas ligadas à actividade tauromáquica” afirma Sérgio Caetano, coordenador da plataforma Basta, um movimento cuja acção incide na abolição das touradas. Os primórdios da actividade registaram diversas mudanças consoante diferentes contextos. O seu passado é marcado pela forma como o touro era usado para auxilio ao treino militar, logo, tornou-se uma prática nobre juntos das camadas mais altas de uma sociedade estratificada; contudo, na forma como a conhecemos hoje, um espectáculo para massas orientado por um grupo fechado, é o resultado de múltiplas transformações necessárias para a sua permanência e aceitação social. O ilumismo, que fixou a chegada das luzes à civilização europeia, manifestou-se em muitos países ao moldar uma nova consciência social e humana, com isto, inúmeros espectáculos que visavam o entretenimento humano com a exploração de um animal foram abolidos. Contudo, nem Portugal que na época tinha como figura pouco entusiasta das touradas o Marquês de Pombal , nem Espanha acompanharam o desenvolvimento cultural de outros países da Europa Ocidental no século XVIII.
Foi durante o liberalismo e a Primeira Republica que a tauromaquia registou as maiores alterações, chegando mesmo a ser abolida por um período, contudo voltando sempre a ser legalizada com novas formas de fazer o espectáculo, foi assim que surgiram os forcados, como meio de substituição do matador, aquele que após o cavaleiro, entrava na praça para matar o touro, em frente ao público. “Na verdade as touradas estiveram proibidas quatro vezes ao longo da História em Portugal, mas acabaram sempre por ser reativadas devido a interesses económicos. Não era uma actividade muito popular ao contrário do que se pensa.” afirma Sérgio Caetano. Quando em 1836 Passos Manuel aboliu as touradas e mais tarde voltaram a ser permitidas, segundo a argumentação de quem é aficionado, isto aconteceu devido à forte pressão popular, contudo os arquivos desmentem a teoria de quem argumenta sob uma visão pró-tauromáquica, demonstrando que a actividade foi retomada por pressão da Santa Casa da Misericórdia e da Casa Pia, devido à dependência que estas organizações tinham da tauromaquia. Na realidade, as corridas de touros sobrevivem ainda devido às transformações que sofreu, “não tenho dúvidas nenhumas em como é devido a isso que a tauromaquia ainda existe”. Por exemplo, a proibição da morte do touro na arena e a censura do embolar dos seus cornos são decisões tomadas com o intuito de preservar a prática e atrair para a arena público mais sensível, visto que o espectáculo da tourada tornou-se menos violento, pelo menos aos olhos do espectador.
Actualmente, o tema da tauromaquia encontra-se como um dos mais polémicos do país; neste âmbito existe uma forte divergência entre os aficionados, ou seja aqueles que têm paixão pela corrida de touros e consequentemente grandes apoiantes da prática, e uma parte cada vez maior da sociedade que se opõe à actividade. Nos últimos anos Lisboa tem sido palco de inúmeras manifestações que apelam à sensibilização, marchas que juntam organizações, partidos e pessoas vêm a tauromaquia como uma forma do homem procurar superar-se ao animal, somente para entretenimento, com uma crueldade irracional e sem justificação.
Numa das manifestações, num dia dos mês de Abril em que a chuva ameaçava uma tarde que se esperar solarenga, ouvem-se gritos e veem-se expressões de quem percebe que na tourada o touro é um mero instrumento de diversão daqueles que assistem, vivem, e apoiam a tauromaquia; assim como o fazem para o touro esta manifestação defende todos os direitos dos animais – “Circos ideias não têm animais”, grita-se. Ouvem-se tambores, os passos, as buzinas, faz-se silêncio. E o barulho retoma. Do campo pequeno, o maior palco tauromáquico do país, até à Assembleia da Republica, passando pelo Saldanha e a estátua do Marquês de Pombal. Pelo caminho existem cabeças nas janelas, pessoas curiosas e turistas surpreendidos pela força pacifica daquele aglomerado de pessoas, pois nos seus países já não se defendem algumas actividades medievais: “Eu não compreendo as touradas, vivo em Inglaterra, e para mim é uma crueldade. Espero que Portugal acabe com a vergonha que são as touradas. Estamos do vosso lado.” afirma uma estrangeira que veio visitar o país, parada junto ao campo pequeno, local em que a manifestação se concentrou antes de marchar.
Portugal e Espanha não são os únicos países em que as touradas são uma prática legal, existem mais 6 – França (no Sul), México, Colômbia, Peru, Equador e Venezuela. “Quando a época das luzes chegou á civilização, esta manifestou-se mais em países como a Alemanha e a Inglaterra, o que fez com estas práticas mais violentas fossem abolidas.” diz Sérgio Caetano, acrescentando que daí se explica o facto de Portugal e Espanha, países onde houve um maior controle monárquico e conservador sobre as actividade, não terem deixado ser locais em que actividades como as touradas tornassem-se proibidas; a tauromaquia na América do Sul é uma consequência do mesmo, mais precisamente, sob a influência espanhola. No entanto, também é possível esperar algo positivo nos próximos tempos, isto devido ao facto de Barcelona já ter abolido a festa tauromáquica e outras regiões espanholas estarem cada vez mais perto de seguir o mesmo caminho. A fronteira entre Portugal e Espanha tornou-se porosa em vários momentos da história de ambos os países relativamente à forma como existe uma cultura que apesar das grandes diferenças não deixar de ter pontos em comum, a esperança de quem luta contra a corrida de touros é que o nosso país siga o mesmo caminho que Barcelona. “Em Espanha, assim como em Portugal, está provado estatisticamente que a maioria da população é contra as touradas”, sublinha Sérgio Caetano.
“Gente educada não vai à tourada!” entoa-se ao longo da Avenida da República, sob olhares de negação, assim como apoios vindos de quem está de fora da escolta policial. “Cruel, assustador, tenebroso, macabro. Não consigo conceber a ideia de alguém ter prazer de ver o animal a sofrer. Eu fui uma vez à tourada e é-me impossível compreender como é que as pessoas aplaudem o momento em que alguém espeta uma farpa no animal. Todos aplaudiam de pé. Parecia um filme de terror.” relata Cristina Piçarra, uma mulher que seguia na marcha juntamente com os seus dois cães rafeiros e de porte médio que a acompanhavam de forma agitada e alegre pela avenida, ao som dos megafones de quem conduz as centenas de pessoas e dos tambores – um dos quais à responsabilidade de um jovem rapaz.
A tauromaquia não é só um tema que alberga e põe em causa os direitos dos animais, de facto trata-se também de uma desumanização, visto que, como Sérgio Caetano defende, não é só o touro nem o cavalo quem sofre no espectáculo: “Provoca muitos acidentes graves, até mortais, a pessoas. É um tipo de prática que já não tem lugar numa sociedade civilizada, está à margem da evolução”, afirma. Mas a preocupação não se prende somente com os adultos: crianças que são desde muito novas habituadas a esta prática, e em alguns casos mais locais em que marcam inclusive presença em actividades como largadas e arenas, são um forte tema de discussão para aqueles que se opõem à tauromaquia. A exposição de crianças a estes eventos ditos culturais já foi estudada por quem quis provar os efeitos nefastos da tauromaquia na mente de um menor. Comprovou-se que não só aumenta a ansiedade e a agressividade de uma criança como cria uma apatia entre a ela e os animais, insensibilizando-a para o sofrimento do touro; o que é mais recorrente e habitual do que se pensa, existe muito gente que acredite que o touro não sofre durante a tourada. Num questionário online, que conta com uma amostra de cerca de 6000 indivíduos de diferentes idades, observa-se que, entre os inquiridos com menos de 25 anos da zona centro do país, 32,9% dos mesmos afirma que o touro não sofre durante o evento tauromáquico. “A forma como as crianças são expostas é de uma gravidade extrema. Eu vi crianças a arriscar a vida em espetáculos tauromáquicos.” diz Sérgio Caetano, num tom mais rápido do que usara outrora, “O público aplaude, porque sente que vai acontecer alguma coisa de emocionante, mas esquece-se que é uma criança que estão a ver. Eu vi algumas a saírem de maca com ferimentos graves. Sem qualquer protecção”. O caso de crianças em espectáculos em Portugal ganhou uma dimensão maior do a que a que muitos esperavam e o Estado Português recebeu o alerta do Comité Internacional dos Direitos da Criança avisa-se o mesmo sobre a situação e que reprovava a postura de indiferença do Estado.
“Não compreendo estas manifestações, parece que não têm mais nada do que fazer senão estar a ocupar as ruas.” diz uma mulher de alguma idade que se fazia acompanhar por um homem, na Praça Duque do Saldanha, enquanto ainda faltavam alguns metros para a chegada da marcha, “(..) as touradas são tradição, nunca vão acabar”, termina. O que não terminava era o som de quem gritava pela causa animal, sempre acompanhado pelo tambor a marcar o ritmo da marcha. Entre todos gritava-se em uníssono uma outra frase de fácil associação: “Tortura sim, cultura não”. Já na praça, quando um jovem faz um gesto menos próprio para os manifestantes anti-tourada, num acto de provocação, a polícia age com um toque de sirene do seu veículo. Mas foi um dos poucos casos de contestação, pois de facto, existe cada vez um maior apoio popular à causa anti-tauromáquica. “Tourada é escravatura”, ouvia-se agora.
Por entre inúmeros gritos, relatos, cartazes, animais e pessoas, a chegada à escadaria da Assembleia da República, quando o dia já terminava, onde a Polícia de Segurança Pública impedia a passagem aos degraus da infraestrutura, o sentimento que se propagava entre os manifestantes era de companheirismo e de quem cumpriu mais um dia na luta por aquilo que acreditava. Entre um dos manifestantes que se encontrava junto à escadaria, pelo menos até onde era possível, estava Marius Kolff, um alemão líder da organização não governamental CAS – acrónimo alemão para Comité Anti-Tourada, de pé, com um ar orgulhoso daquilo que vê. O seu objetivo é abolir por completo esta actividade por todo o mundo, e para isso coopera com organizações de diversos países para trabalhar em conjunto de modo a atingir a sua meta. “Queremos que as pessoas deixem de comprar bilhetes, é o que queremos fazer. Concentramo-nos nas touradas somente. Já falámos com governos de alguns países, inclusive. Temos o objetivo bem definido.” afirma Kolff, acrescentando ainda que é em Portugal que tem o maior número de movimentos com quem trabalha.
“As touradas irão ser abolidas, mas temos que saber esperar. É uma questão de tempo. É necessário atacar o problema de diversas formas, não será uma tarefa concluída só pela manifestação. É isso que o BASTA procura fazer e para tal é preciso cuidado com a forma de agir”, diz Sérgio Caetano, tal como se faz num jogo de xadrez. “É necessário pressionar as instituições e o poder” acrescenta ainda. Até há pouco tempo era a própria actividade tauromáquica que se regulava a si própria, alteravam leis conforme os seus interesse e guiavam-se de forma independente, devido a uma aura de proteção concedida às famílias e instituições que dependem desta prática. Foi uma audiência que alterou o panorama tauromáquico em Portugal em que o movimento Basta esteve presente, junto com o ex-Primeiro Ministro Pedro Passos Coelho e o ex-Secretário de Estado da Cultura Jorge Barreto Xavier; assim, pela primeira vez, introduziram-se medidas que não tenham sido criadas pelo próprio sector tauromáquico. Uma das mudanças foi a obrigação do aviso em cartazes publicitários de que o espectáculo tauromáquico pode ferir a sensibilidade dos espectadores. “ Foi a primeira vez que o Estado Português admitiu que o espectáculo é violento e pode causar alguma perturbação em quem assiste.”
Uma hora em frente à Assembleia, marcada por minutos de silêncio, momentos de maior tensão, assim como descontração, mas quase sempre guiada por vozes manifestando-se ao ritmo do tambor. Um muro de cartazes e panfletos no início da escadaria coloriam o cinza do piso e a crença na mudança. A manifestação terminou, mas só isso, tudo o resto que falta fazer ainda está por ser feito.
Actualmente ainda existem várias praças de touros no país, contudo nos últimos anos alguns palcos para este espectáculo têem vindo a ser fechados, por falta de dinheiro e aderência do público. Entre as praças, destaca-se a do Campo Pequeno, a maior e utilizada para espectáculos com um cariz diferente: a
Nessa mesma praça do Campo Pequeno, numa noite dias após a marcha, um grupo de manifestantes encontra-se, ameaçado novamente pela chuva, na parte de fora em frente ao palco do espectáculo tauromáquico. Procuram consciencializar a audiência antes do início da abertura da temporada que decorrerá uma hora depois do início dos seus pacíficos manifestos. Mas pacíficos não significa silencioso, e isso fazia-se notar nas vozes de quem marcava presença. Em torno de toda a praça, da porta principal até aos camiões onde os touros esperam para entrar naqueles que serão momentos dolorosos e último, para satisfação de quem gosta de ver a corrida